Um povo heroico, um brado retumbante

Uma alma quieta demais não vai muito longe. Fica presa a convenções sociais e ao que os outros vão pensar (quem mora em Minas Gerais então, sabe muito bem o que é esse sentimento). Sem generalizações, por favor. Vê se dá para entender o que eu tou falando: disciplina, organização e temperamento tranquilo nada têm a ver com criatividade. Um cara pode ter a vida toda bagunçada e ser desorganizado e ser um grande artista ou um cara que arranja soluções práticas para tudo (sou eu). Ou pode ser bagunceiro e ser um fiasco para pensar. Ou pode ser quietinho, organizadíssimo e artista, ou também tão metódico que se torna um chato e, sem criatividade ainda, piorou. Em suma, a gente encontra por aí combinações e combinações de características, e é isso que faz de cada pessoa única.

Quando eu digo "quieta demais" estou falando sobre pessoas que não arriscam porque têm medo. Medo de sofrer, medo de perder, medo de ficar pobre, medo de ficar ainda mais pobre... Medo é algo que parece não fazer parte do vocabulário do TDAH. Já falei sobre medo aqui, mas tem hora que a gente é até um povo heroico demais, com um brado retumbante no coração, louco para sair e explodir. A gente se arrisca a morrer, se arrisca para brigar, se arrisca para provar que é bom em algo... Para depois a Santa Rita do Metilfenidato nos dizer que não é nada daquilo.

Sabe uma coisa que descobri depois de tantos anos de que eu não gostava, mas me esforcei para gostar? Sangue e gente morta. Não, calma, não sou assassina e muito menos necrófila. O negócio é o seguinte: quando fazia Química, era estagiária do IML no departamento de toxicologia, daí convivia com defuntos, partes de defuntos, sangue, secreções, órgãos... Era destemida! Mas ainda assim eu sentia algo estranho toda vez que ia lá, um frio na barriga. De toda forma, eu gostava do que fazia. Ao final do curso, surtei e disse que não ia mexer com Química nunca mais na minha vida - estava estressada do curso e queria terminar logo, quase desisti faltando um bimestre para acabar. Daí fiz vestibular para Fonoaudiologia.

Ok, lá vamos nós para os defuntos novamente, já que tem aula de anatomia. De novo a mesma sensação. Gostei do curso, surtei no segundo período, surtei de novo no quinto, queria desistir também, cliniquei por quatro anos, e hoje a Fonoaudiologia está enterrada para mim. Não quero voltar mais. Mexer com vivo também é complicado, mas isso não vem ao caso agora.

Aonde eu quero chegar: hoje em dia não me apraz de forma alguma ver gente morta, apesar de ter visto de tudo quanto foi jeito. Na época do IML fiquei fria e a morte passou a ser algo corriqueiro. Agora tenho pavor só de ver uma poça de sangue: fico imaginando logo uma tragédia sem precedentes e não quero nem olhar. Não tenho essa mulherzice de desmaiar, mas ficaria certamente impressionada por um bom tempo. Sabe mineiro no trânsito? Ele tem que parar para ver. Mas ver o quê? Sei lá, ele tem que ver. O ser humano é mórbido por natureza. E sua morbidez faz a lentidão do trânsito: toda vez que tem acidente, acho que eu sou a única do ônibus que não se levanta para contemplar a cena bizarra. Como o motorista também diminui a marcha para ver, olha a confusão que ele causa atrás de si!

Eu descobri muita coisa sobre mim porque foi agora que parei para me conhecer. Antes não tinha tempo e fazia tudo o que dava na telha só para mostrar que eu era capaz. Mas depois eu percebi que estava mineira demais, preocupada com o que os outros estariam pensando a meu respeito. Desci do pedestal de inteligente ao extremo - eu tenho uma inteligência normal, a diferença é que a enxurrada de pensamentos e ideias junto com a impulsividade compunham a fórmula explosiva para todo mundo achar que eu era um gênio - e passei a ser uma pessoa normal. As pessoas passaram a esperar menos de mim porque eu passei a dar menos de mim para elas, como uma forma de satisfação, e com isso aprendi a a aceitar melhor meus erros e minhas limitações.

Desde os doze anos dou aula de matemática. E é isso mesmo que eu tenho que fazer: trabalhar com exatas, o que sempre foi minha paixão e lá atrás eu joguei fora por causa de um surto de querer abandonar tudo. Falei que nunca mais ia mexer com Química, mas ledo engano... Engenharia Mecânica, aqui me tens de regresso! Ano que vem eu 'tou voltando. ;-)

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Cadê a TV de LCD que estava aqui?*

*Texto escrito por Grace Piazzi

Não posso deixar de começar esta coluna sem falar da felicidade que estou sentindo. Por dois motivos: o primeiro, pelo espaço gentilmente cedido pela Glaucia (minha irmã) e pela Mirka (com a qual não tenho contato, mas que há um tempo, muito gentilmente me recebeu em sua casa). O segundo, por ter conseguido me libertar de mim mesma. Como assim? 

Sempre desconfiei de que não fosse muito normal. Apesar do meu corpo calmo, meu jeito pacato, minha mente sempre pareceu um turbilhão. Um turbilhão de ideias, de coisas a fazer e de constantes autorrecriminações no fim do dia, por conta das coisas que me havia me proposto a fazer e que não passavam de propostas. Em suma, o significado literal da expressão “brainstorming”

“Em meio a tantas coisas a fazer, por onde começar? Pela mais fácil, óbvio! Mas a mais fácil parece tão complicada. Vejamos a próxima... Ih, não consigo me concentrar. Peraí, deixa eu voltar na anterior, acho que vai dar. Não, não foi do jeito que eu pensei. Vou pra próxima de novo e depois eu volto.” E nesse vai e vem, o sono batia e já era hora de deitar. E deitava. “Mas cadê o sono que estava aqui? Estou tão cansada! Puxa, não consegui fazer nada hoje, mas amanhã, sem falta, eu vou fazer!” Pensando nessas coisas, mais uma hora se passava, até ser vencida pelo cansaço e apagar. Quando eu dava sorte, conseguia dormir uma noite inteira, mas quase sempre, acordava lá pelas tantas, sendo assombrada pelos mesmos pensamentos. E lá ia mais uma hora pra pegar no sono de novo... Essa era minha vida, há pouco menos de uma semana. 

Alguns me perguntam como eu nunca desconfiei de nada, enquanto estava no ensino fundamental e se eu não tirava notas baixas, por causa da dificuldade de concentração. A resposta é não. “Mas por quê? Quando você sentava pra estudar pras provas, não dava um certo desespero?” Novamente, a resposta é não. “Mas por quê?” Simplesmente, por que eu não sentava pra estudar. Não precisava. Quando sentava pra isso, lia (com uma certa angústia) rapidamente o que precisava e pronto! Já estava tudo estudado. Mãezinha, agradeça a Deus todos os dias pelo fato de sua filha aqui ter nascido com QI acima da média! Caso contrário, o estrago teria sido muito maior. Ou melhor, teria havido estragos. 

Comecei a sentir certa dificuldade quando passei para o ensino médio. Achei que fosse normal, já que o nível de exigência intelectual tinha aumentado e as disciplinas já não eram tão simples, além de a instituição ser o CEFET-MG (sim, eu sobrevivi a ele). Constantemente, eu me pegava sonhando acordada na sala de aula e, quando voltava à realidade, ainda dava tempo de aprender um pouquinho. As notas declinaram, mas não cheguei ao ponto de ficar em recuperação. Novamente, o QI acima da média estava lá pra me ajudar. Entretanto, tinha uma coisa que começava a me incomodar: a leitura. A professora de literatura passava as referências que a gente precisava ler para fazer as provas, ou estudos dirigidos em sala. Eu levava semanas pra ler um livro pequeno. Isso quando chegava a concluir a leitura. A cada duas linhas lidas, era uma viagem ao mundo da lua. Pra não ficar pra trás, os preguiçosos da turma sempre arrumavam um resuminho das obras. E assim eu me virava. Até tirei notas muito boas, mas a consciência pesava. 

Não satisfeita, inventei de fazer um curso técnico. Eu sempre soube que não atuaria na área, mas fui lá, saber qual é a desse negócio. Escolhi um curso que julgava tranqüilo: Química. É, eu tinha facilidade com a disciplina e imaginei que no curso não seria diferente. Engano total. Minhas notas declinaram ainda mais, não consegui acompanhar o ritmo da turma até que... “Mãe, tomei pau!” “Como assim, Grace? Você não faz mais nada na vida além de estudar! Faça-me o favor, né?” Repeti um módulo do curso. Aos trancos e barrancos, consegui conclui-lo. Mas o sentimento de frustração foi tão grande, que eu não quis saber de seguir carreira nessa área. 

Poucos meses antes de acabar o curso, fui chamada pra trabalhar num órgão do Estado de Minas Gerais, por meio de um concurso para o qual eu não havia estudado uma linha sequer. Como? Não sei. Dizem as más línguas que o tal concurso, para o meu cargo, rendeu 217 candidatos por vaga. Se era verdade, eu não sei. Já faz 8 anos que trabalho para o Estado e ninguém ainda me respondeu... O fato é que, quando o comentário chegou até mim, fiquei calada, mas pensei: “Ainda tenho salvação nessa vida!” Aí, decidi que era hora de fazer vestibular. Mas quem disse que seria fácil? Eu achei que seria. Outro engano. 

Três tentativas depois... Ah, finalmente! Passei na UFMG. Ufa, agora minha vida estaria totalmente resolvida. E não é que eu me enganei outra vez? Aí sim, o inferno se instaurou na minha vida. A cada aula, o quadro negro se transformava numa enorme TV de LCD, onde eu via toda minha vida, as coisas que eu tinha que fazer, as que eu não fiz, as que deveria ter feito... Ou seja, aquelas mesmas coisas que me assombravam na hora de dormir e mais algumas. Resultado: exame especial nos três primeiros períodos. Passei em várias disciplinas com nota mínima e sempre com aquela sensação de “sou burra e não consigo acompanhar nada!”. E novamente, aos trancos e barrancos, cheguei ao sexto / sétimo períodos (sim, sou irregular) de Terapia Ocupacional. Não sei como ainda, mas cheguei. 

Curiosamente, essa chegada me jogou contra mim mesma. Vou explicar. Cursei semestre passado, uma disciplina chamada “Terapia Ocupacional Aplicada ao Desenvolvimento B”, que se divide em dois módulos: no primeiro, estudamos crianças com TDAH e no segundo, crianças com paralisia cerebral. Acontece que no primeiro módulo, o enfoque dado pela professora foi nas crianças com TDAH predominantemente hiperativas. Ah, isso não era novidade pra mim. A Glaucia tem o tipo combinado de TDAH e, baseada no comportamento dela, eu soube responder tanta coisa (sim, porque eu achava que a doida era só ela, ahahaha...). Aí a coisa foi apertando. O semestre parecia não ter fim. Tanta coisa pra ler e, pra variar, eu nunca conseguia ler tudo. A leitura ia até a metade, isso quando lia alguma coisa. A cada aula, era uma angústia. E lá estava a TV de LCD no quadro negro mais uma vez! Resultado: mais um exame especial. Não passei e estou repetindo a disciplina. Fiquei extremamente decepcionada, mas mal sabia eu que essa repetência mudaria minha vida. 

Passada a frustração, já de férias da faculdade e com mais tempo pra me dedicar às pessoas queridas, a Glaucia e eu conversamos a respeito do problema que eu achava que era só dela e das coisas boas que ela havia conquistado só com o uso da ritalina. Obviamente, fiquei muito feliz por ela e isso me despertou um interesse pelo TDAH que eu não tinha tido ao cursar a tal disciplina. Afinal, quem é esse desconhecido que as pessoas tanto usam pra rotular criancinhas levadas? Após inúmeras leituras (forçadas, claro), algo me chamou a atenção: o subtipo de TDAH desatento. Achei tudo muito estranho, afinal, parecia que os textos relacionados a esse subtipo estavam falando de mim. Ainda assim, resisti um pouco e achei que era mais uma das minhas constantes viagens ao mundo da lua. 

E começou mais um semestre! Ah, desta vez vai ser tudo diferente! Vou ler tudo o que os professores mandarem e parar de fazer as coisas aos 47 minutos do segundo tempo. Comecei com o maior pique, que durou incríveis 12 dias! Dali em diante, lá estava eu fazendo tudo de novo. A angústia começou a tomar conta e, já não aguentando mais, liguei desesperada pra Glau: “Me dá o telefone desse psiquiatra seu, pelo amor de Deus!” Marquei minha consulta, fui lá e não deu outra: TDAH predominantemente desatento. Uma mistura de decepção e felicidade tomou conta de mim. Levei um susto, quando vi o médico escrevendo a receita: RITALINA. “Mas eu preciso disso, doutor?”. Ele sorriu e disse: “Quem vai me dizer isso é você!” “Tudo bem então, vamos ver como é isso. Se funcionou pra Glaucia, talvez funcione para mim também.” 

Gente, se milagre existe, ele se chama ritalina! No primeiro dia, eu já senti a diferença. Assisti a uma aula inteira sem viajar (a TV de LCD sumiu), consegui dar sequência a todos os documentos que estavam parados na minha mesa de trabalho, por falta de saber por onde começar, parei de levantar da cadeira a cada cinco minutos e andar sem rumo pelos corredores do meu local de trabalho, li quatro artigos científicos, um atrás do outro, sem nem piscar e um livro inteiro numa tarde de domingo. Além disso, estou dormindo uma noite inteira, sem a menor dificuldade. Aquela sensação de frustração em saber que o dia passou e eu não fiz nada sumiu. 

Bom, esse foi só um resumo da minha vida acadêmica. A minha ideia era falar também do meu comportamento no dia a dia, mas este texto teria o triplo do tamanho e achei melhor deixar para uma próxima postagem. Só o que eu sei é que em pouco menos de uma semana me transformei em outra pessoa e essa outra pessoa é muito melhor! Não preciso mais ficar sob a máscara do ‘tipo sou foda’ pra esconder meu problema. Devo admitir, a sensação de ser normal é muito boa. 

Retorno ao psiquiatra daqui a um mês! 

* * * * *

Comentário da Glaucia Piazzi: 

Bem-vinda ao time dos abençoados devotos de Santa Rita do Metilfenidato! Você vai obter resultados incríveis com o uso correto da ritalina. Boa sorte!

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Nossa bobagem de cada dia:

A minha bobagem é sem ritalina mesmo, porque sóbria é mais gostoso de se fazer as coisas. Por isso resolvi começar o meu dia com uma oração.

“Pai nosso que está nos céu, meu pai não é piloto, ele é mecânico. Santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino. Complicado isso, fica parecendo aquelas conquistas medievais, um rei invadindo o reino do outro, castelo, dragão, princesa... Onde eu estava mesmo? Ah, sim, seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu. É, piloto quando está em terra, fala de avião, quando está em vôo fala de mulher. Bobagem danada, gente. Eu queria a uma hora dessa estar em comando para ver na prática mesmo o nível de cruzeiro. Por isso que atleticano nunca é piloto, para não ter que se manter em nível de Cruzeiro. A propósito, o jogo do América foi ótimo, pena que o juiz tenha roubado tanto. Tadinho do Mequinha, tão injustiçado! Nossa, viajei. O pão nosso de cada dia nos dai hoje... Putz! Lembrei que tenho que pagar o seu Manoel da padaria! Ah, não faz mal, amanhã eu vou lá e aproveito para fazer a unha com a dona Judite. Só que os esmaltes dela estão ruins, vou sugerir comprar uns novos, tem umas cores bonitas que saíram estes dias, última moda. Ah... ahmmm... é... ta. Amém.”

Texto por Glaucia Piazzi

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